Confluência e contramão

Por Heitor Augusto, programador-chefe do NICHO 54 e curador da mostra “Insurreição!”

Como oferecer imagens de resistência, re-existência, reinvenção e rebelião sem cair nos signos já cooptados pelo neoliberalismo? De que forma preservar o cool1 como forma preta de engajamento com a vida sem transformá-lo numa commodity, um produtinho ao alcance de um clique?

Essas e muitas outras perguntas informam a mostra Insurreição!, que apresentamos ao público do NICHO 54 neste agosto de 2021. Na esteira de América Negra: Conversas Entre as Negritudes Latino-americanas, retrospectiva que inaugurou em maio o calendário do Eixo Curatorial do nosso instituto, Insurreição! reúne 13 filmes dos gêneros ficção, documentário e experimental realizados entre 1969 e 2019 no Brasil, Gana, Cuba, Argélia e Estados Unidos.

Aqui no NICHO 54 gostamos de mobilizar um conjunto de questões disparadoras do processo de investigação curatorial e, a partir disso, deixar a vida nos levar. Insurreição! carrega a vocação evidente de apresentar filmes que, de maneira mais literal, registram episódios e biografias de resistência negras. Contudo, alinhados com a identidade do Eixo Curatorial do instituto, gostamos de inverter e subverter expectativas. Assim, também orientaram o processo de investigação um conjunto de questões menos evidentes, tais como:

Quais formas podem tomar a resistência? Quais corpos associamos a ela? Como destronar a primazia do homemcis-hetero como signo da representação da resistência ao racismo? Como dar a ver a política por detrás da simples reunião de corpos dissidentes? Como honrar as mais velhas e os mais velhos? Como extrair de episódios de insurreição do passado a vitalidade para elevar a autoestima dos negros brasileiros espremidos num país que não esconde seu desejo de morte?

Essas perguntas guiaram todas as etapas do processo de construção desta mostra: da concepção em 2020, passando pelo aprofundamento da pesquisa, a construção da identidade visual2, o recorte final, a programação e a elaboração do programa do curso de formação que acompanha Insurreição!.

Ao lado das perguntas, havia desejos. Inicialmente tímida, a vontade de pensar num conjunto de filmes a partir da relação de atração e repulsa operada entre campos magnéticos se avolumou à medida que a paisagem curatorial ganhou contornos mais firmes. Parece abstrato, mas não é. Visualizo os filmes orbitando ao redor de três campos de força:

I. Não me curvarei, pois nunca me curvei

Campo de força cuja intensidade de atração concentra a maior parte desta mostra. Nele gravitam filmes que endereçam de forma mais direta questões como escravização e resistência, elaboração de plataformas políticas coletivas, descolonização e colonialismo.

II. Formas de existir negro

Força tensionadora das estratégias políticas tradicionais, esse campo é um ímã dos filmes que apresentam modelos contestadores de auto-organização. Aqui, prioriza-se a construção de espaços físicos e simbólicos onde a cis-heteronormatividade não alcança ou não está ao centro.

III. Nem tudo cabe na representatividade [spoiler: quase nada cabe]

De contorno mais maleável, esse espectro atrai filmes que interseccionam com outros campos. Sua especificidade, contudo, está em permitir que nos engajemos com certas imagens fora da chave binarista que opõe “filmes que avançam a luta antirracista” x “filmes que representam o negro de forma negativa”.

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Em Insurreição!, a relação entre os campos de força e as obras é de contínua tensão e movimento. Filmes gravitam com maior ou menor proximidade dos centros de cada núcleo a depender da relação que estabelecem com outros filmes. Na prática, pensei a programação com particular atenção aos filmes de tensionamento, aqueles que causam um movimento disruptivo no programa como um todo.

Creio que na relação atração-repulsa entre filmes, mas especialmente entre espectador-filme, resida um imenso potencial para expandir o repertório de imagens às quais recorremos no exato momento em que pensamos os signos “negritude” e “insurreição”. A chegada da mostra até vocês é a ocasião de aferir a robustez dessa aposta.

Aos filmes!

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“Agora é a vez de quem? – Do nosso povo!”. Essa é a conclamação que marca a experiência de assistir a Nationtime (1972), filme de abertura da mostra Insurreição!. Trata-se de um registro histórico – a Convenção Nacional Preta em 1972 nos EUA – pelo olhar de um realizador histórico – William Greaves, principal documentarista negro a capturar múltiplas camadas das nossas vivências. Mergulhado no calor do momento, essa obra é uma espécie de elo entre nós que aqui estamos em 2021 com as gerações anteriores que buscaram a construção de uma plataforma política racializada e unificada3. Perdido por décadas e jamais visto em sua integralidade até o ano passado, Nationtime chega a vocês em cópia restaurada. Mirar o filme de Greaves nos ajuda a relembrar que as nossas ansiedades quanto às divisões dentro da comunidade não são assuntos exclusivamente contemporâneos.

O segundo dia de programação – sábado, 28 – faz um giro de 180 graus e investe na potência da organização política fora do regime tradicional. Contrafeitiço (Spit on the Broom, 2019) se equilibra entre a manutenção do mistério e a apresentação dos rastros de uma organização semissecreta de mulheres negras estadunidenses na ativa desde 1840! A estratégia de documentação fabular de Madeleine Hunt-Ehrlich nos lembra das práticas religiosas afro-brasileiras, nas quais se mantém o segredo para que um modo de fazer seja preservado.

Ainda no mesmo dia, abalando preconcepções, chega Shakedown (2018), o filme-libido de Leilah Weinraub. Com acesso íntimo à dinâmica de uma boate comandada por mulheres negras lésbicas e voltada a esse público, o retrato que a cineasta faz da vida sapatão preta vai na direção oposta da chamada “política da respeitabilidade”. Não importa ao filme construir cidadãs modelos, mas sim pessoas que, como tais, carregam contradições, potência e tesão. A realizadora enxerga a boate Shakedown para além do que está à primeira vista. Ela é, nos diz o filme, um espaço de criação e expressão de vida para corpos empurrados para as margens da norma, inclusive dentro da própria autorrepresentação negra4. Agressiva e direta, a energia que circula em Shakedown não pode ser contida.

O terceiro dia da mostra – domingo, 29 – traz um programa de curtas que endereça a toxina do colonialismo. Entenda o processo colonial em 5 minutos é um frisson de montagem e de texto. Realizado por Ana Julia Travia como parte da peça “Black Brecht: E se Brecht Fosse Negro?”, esta é a primeira exibição do filme-vídeo-intervenção num contexto cinematográfico. Pátria (Zahlvaterschaft, 2021) investiga a postura ambígua da Alemanha frente ao seu passado colonial por meio da desesperadora história de um togolês com ascendência alemã, mas que tem seu pedido de cidadania negado. Já Monangambee (1969) mira sua câmera para as relações Angola-Portugal no auge da guerra pela independência. Poética, essa foi a primeira realização de Sarah Maldoror, recentemente homenageada na Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte. Encerrando o programa está Você me esconde (You Hide Me), do ganês Nii Kwate Owoo, que escancara o saque colonial das obras de arte africanas.

O quarto dia da mostra – segunda, 30 – coloca em diálogo duas ficções de estéticas díspares, mas que dividem o mesmo interesse pela resistência à escravização. Ambas as obras passam longe da pornografia do sofrimento negro à 12 anos de escravidão ou da reiteração da subalternidade perpetrada pelas telenovelas. A sessão inicia-se com Mato adentro (2019), de Elton de Almeida. Imerso no suspense e na escuridão da mata fechada, a ficção é tanto sobre escravização quanto sobre quem é esse brasileiro-negro-amestiçado que a esta terra chama de pátria.

Ainda nas Américas, mas agora em Cuba, Maluala (1979), ficção do afro-cubano Sergio Giral, mergulha no dilema ético de líderes de palenques, organizações similares aos quilombos no Brasil. O que fazer quando a coroa espanhola promete a liberdade a um seleto grupo de ex-escravizados sob a condição de re-escravização de uma maioria? Coba, Gallo e outras lideranças dos palenques respondem de forma distinta nesse deslumbrante retrato de resistência que se recusa à derrota permanente.

A terça, 31, é dedicada exclusivamente à reprise das obras projetadas na primeira semana. Temos experimentado a repetição de um programa desde o NICHO Novembro Mostra de Filmes 2020 e agora oferecemos um novo formato.

Insurreição! retoma sua programação na quinta, 2, com foco na atuação dos Black Panthers. A animação experimental Pantera Negra, realizada por Jô Oliveira em 1968, é uma lírica e contundente representação do ativismo negro estadunidense feita no calor do momento. Separados por cinquenta anos, Os Panteras Negras: Vanguarda da revolução (The Black Panthers: Vanguard of the Revolution, 2017) se debruça sobre o legado dessa militância antirracista. O documentário de Stanley Nelson Jr. não apenas é o único longa-metragem a investigar exclusivamente a trajetória do partido5 como também se destaca pela coragem de endereçar os pontos complexos da organização e de seus líderes.

As duas últimas sessões da mostra retomam duas das provocações curatoriais que expus no início desta apresentação: qual é a forma da insurreição e quais são os corpos que personificam o insurgir-se negro?

A exibição de As aventuras amorosas de um padeiro (1975) na sexta, 3, é um convite desta mostra para o nosso público negro: vamos buscar formas diferentes de nos engajarmos com imagens negras além da chave da representatividade? Trazer para Insurreição! essa inovadora-conservadora comédia social de Waldyr Onofore ilustra o gesto de comprometimento do NICHO 54 com uma prática curatorial que leve as espectatorialidades negras para territórios complexos.

Se a jornada de Insurreição! foi iniciada com um documentário que traz uma imagem de militância mais próxima ao que o senso comum imagina, o filme que encerra a mostra no sábado, 4, toma o caminho oposto dessa representação. O fazer político em As pretas contra-atacam (Chocolate Babies, 1996) é radical e passa tanto pelas escolhas formais dessa obra quanto pela maneira em que as personagens estão no mundo. Um bonde de bixas, travestis e sapatões pretas (e uma aliada asiática) lutam, com táticas que combinam ludicidade e ataque direto, contra a política de morte que soterra as vidas das pessoas LGBTQIA+ negras e soropositivas. A ficção de Stephen Winter é, ao mesmo tempo, revigorante e triste; transborda tanto uma energia anarco-negra-punk quanto um sólido domínio de convenções do chamado cinema de arte.

Encerrar a mostra com esse filme é uma proposição direta: não existe futuro negro sem o protagonismo dos corpos dissidentes. Espero que a nossa comunidade entenda isso antes que sigamos repetindo as violências do passado ou sigamos caindo na armadilha da política da respeitabilidade.

1 Venho abordando a noção de cool – ou “descolado” – no contexto do cinema Blaxploitation desde 2013. Para uma compreensão mais ampla, recomendo a masterclass que ministrei a convite do Centro Cultural São Paulo em julho de 2020, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=9aGsrqQq7Vo

2 Novamente assinada por Lucas de Brito, desta vez em parceria com seu assistente Icaro Chagas. Na interlocução com Lucas o provoquei para que chegasse a uma síntese que fugisse das simbologias desgastadas. Convido todes a investigarem os possíveis sentidos que residem no pôster de Insurreição!

3 Entendo que a National Black Political Convention traz lições que podem ser úteis a muitos setores do ativismo, entre eles o próprio Black Lives Matter.

4 Quem teve a oportunidade de assistir a Línguas Desatadas (Tongues Untied) no NICHO Novembro Mostra de Filmes 2019 tomou contato de maneira mais direta com a discussão do alijamento da população preta LGBTQIA+ dentro dos movimentos negros organizados.

5 The Black Power Mixtape: 1967-1975 tangencia o Partido dos Panteras Negras, mas tem como objeto central o discurso e a prática do Black Power.

Ficha técnica

Concepção, curadoria e programação: Heitor Augusto
Captação e prospecção: Fernanda Lomba
Produção: Karen Almeida
Produção de programação e de cópias: Matheus Pereira
Concepção do curso “Biografias de resistências negras”: Heitor Augusto, Karen Almeida
Professores do curso “Biografias de resistências negras”: Adriana Paulo da Silva (Aula “Baquaqua”), Elisabete Pinto (Aula “Laudelina de Campos Melo”), Fernanda Sousa (Aula “Toni Morrison”), Luis Felipe Hirano (Aula “Grande Otelo”)
Concepção de arte e identidade visual: Lucas de Brito; assistência: Icaro Chagas    
Tradução e legendagem: Aline Ferreira, Bettina Winkler, Bruna Barros, Juan Rodrigues, Leon Reis, Shay Santana
Assessoria de imprensa: Cristiano Filiciano da Silva
Redes Sociais: Eduardo Ribas
Desenvolvimento da plataforma SALA 54: Mandelbrot
Programação: Andrei Thomaz, Filipe Davi, Marcos Marcelo
Revisão: Maíra Corrêa Machado
Agradecimentos: Aline Scátola, Cornelius Moore, Firelight Media (Kandace Fuller, Ximena Amescua) IndieCollect (Cameron Haffner, Matt Hoffman, Sandra Schulberg), June Givanni, Louise Archambault Greaves, Pedro Ribeiro Nogueira, Stanley Nelson Jr.
Patrocínio: Open Society Foundations