Mirando a América com olhos negros

Por Heitor Augusto, programador-chefe do Nicho 54 e diretor curatorial de “América Negra”

Se fosse convidado a resumir em uma imagem o que a mostra América Negra almeja causar no público, recorreria ao signo do mochileiro: uma pessoa aventureira que percorre territórios com o espírito curioso, interessado. América Negra: conversas entre as negritudes latino-americanas é um mochilão cinematográfico pela latinidade a partir do marcador racial da negritude.

Há cerca de um ano, concebi o projeto que agora chega a vocês e, desde aquele momento, a força motriz que distribui energia para os outros pilares segue sendo a mesma: o desejo de descentralizar os Estados Unidos desse trono de onde são emitidas as vozes culturais que dão parâmetro aos entendimentos de negritude ao redor da diáspora. Assim, é evidentemente intencional o título desta mostra, ainda mais quando dito em inglês: “Black America”, ao contrário do que nossos parentes pretes estadunidenses acham, é aqui também.

Não se trata de uma ânsia pelo contraponto às narrativas negro-estadunidenses. Afinal, um pedaço significativo da minha prática incorpora influências desse território. Com América Negra, contudo, a provocação que faço é: o que entraria no nosso campo de visão se nós, pessoas negras e latinas, fizéssemos o exercício de, ao conversarmos sobre vivências pretas, descentralizássemos os Estados Unidos como principal interlocutor ou território que provê narrativas?

Em forma de uma viagem que percorre 10 países e 35 filmes organizados em 11 sessões distribuídas ao longo de 10 dias, América Negra propõe formas de responder a essa pergunta.

Se para nós os EUA são essa espécie de primo rico que o senso comum diz ser o território onde há racismo “de verdade”, a nossa mostra também tomou como reflexão contínua a posição do Brasil frente à latinidade. Nesse sentido, o grande desafio para a curadoria foi, por um lado, compartilhar com vocês obras negras que só poderiam ter florescido aqui no nosso território, dada a singularidade de termos a maioria da população negra ou racializada; por outro, fugir do risco de o Brasil “falar demais” dentro da mostra, abafando, assim, outras vozes latinas. Espero que tenhamos logrado equilíbrio e deixo para vocês avaliarem isso por meio das costuras de programação que montamos.

Um terceiro esteio do processo curatorial de América Negra está na intenção de “desembranquecer” territórios erroneamente percebidos ou como brancos ou desprovidos de presença negra. Quiçá o principal seja o dos hermanos, terra de Manu Ginóbili, Melisa Gretter e Luis Scola. Talvez não haja território latino que se projete tão branco quanto a Argentina. Assim, ao mirá-la – e também ao Uruguai –, a nossa mostra deseja desmontar essa percepção de ausência negra. Existem ainda outros “desapagamentos” aos quais a nossa mostra aspira. No México, por exemplo, até há pouco tempo, a Constituição projetava o país como resultado único das contribuições do colonialismo branco e dos indígenas. Não à toa, a professora afro-mexicana Doris Careaga Coleman deu à sua tese de doutorado o título: “La ausencia de lo afro en la identidad nacional de México: Raza, y los mecanismos de invisibilización de los afrodescendientes en la historia, la cultura popular, y la literatura mexicana”. Assim, América Negra traz os aportes negros para, ao lado dos efetuados pelos povos originários, pensarmos negritude, construção identitária e legado cultural no México, mas também no Peru e na Bolívia.

Um último valor importante no start da pesquisa curatorial é o movimento de ida e vinda entre Brasil e o restante da América Latina — mais especificamente, a aposta em oferecer contrastes e aproximações. Assim, durante América Negra vocês irão navegar por pelo menos duas sensações: “esse filme poderia ser sobre o Brasil” x “no Brasil jamais seria assim”. Dividimos com outros territórios latinos muitas semelhanças. Todavia o processo histórico aqui é bastante particular. Assim, tal como detalho abaixo, vocês verão que a programação agrupa filmes a partir de consonâncias e ruídos, não de nacionalidades ou época da realização.

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Vamos falar da programação? Vou adotar um procedimento diferente para apresentá-la: em vez de seguir a cronologia das exibições, farei um mapa de navegação guiado por eixos:

Tradições culturais negras latino-diaspóricas

Particularmente na Venezuela e na Colômbia, a maioria dos filmes que nos chamaram atenção durante a pesquisa curatorial tinham como interesse a investigação de expressões culturais negras, buscando muitas vezes uma conexão com a raiz original no continente africano.

A sessão de abertura na sexta, 4, reflete esse eixo. Do México vem Diabinhos, diabinhas e alminhas (Diablitos, diablitas y almitas: Danzando la vida y la muerte), que apresenta a “danza de los diablos” sob a ótica das crianças. Já Tambores afro-uruguaios mergulha no candombe, manifestação musical e cultural, abraçando as tensões trazidas pela presença branca. Por fim, a Colômbia nos lega Del palenque de San Basilio, etnoficção que borra o sonhado e o real, mergulhando o público numa potência crescente.

Outros dois programas habitam o mesmo eixo. A primeira sessão de domingo, 6, tanto confirma quanto chacoalha ideias acerca da diáspora. Da Colômbia, Palenque é um musical-documentário cantado a partir do primeiro território da América do Sul a se tornar livre do braço colonizador. Em seguida, a Venezuela nos oferece Tambores de água (Tambores de agua), vibrante registro da percussão aquática orquestrada por mulheres negras de Barlovento. Por fim, o brasileiro (Outros) Fundamentos investe nas linhas tortas e coloca em cheque uma preservação acrítica e sem mediação das tradições vindas da África.

Um terceiro programa do mesmo eixo é a sessão de sexta, 11. O venezuelano Belén, a rainha do quitiplá (Belén, la reina del quitiplá) apresenta a influência transacional da música e do instrumento imortalizado por Belén María Palacios, patrimônio imaterial do estado de Miranda. Já o equatoriano Ela virá: a presidenta (Ella vendrá – La presidenta) especula um futuro no qual o país seria governado por uma mulher negra. Quais seriam suas decisões?

Cinema de gênero: novelo a desatar

Aqui no Brasil a discussão acerca do que constitui um Cinema Negro tem gradualmente se complexificado, o que é bem-vindo. Na sessão de terça, 8, nossa curadoria propõe e provoca o público a ultrapassar as compreensões reducionistas e a mirar o contraditório nos diálogos entre nós, pretos.

O brasileiro Egum e o colombiano Saudó, labirinto de almas (Saudó, laberinto de almas) mergulham fundo no cinema de horror. O primeiro toma como ponto de partida uma dimensão das religiões de matriz africana, enquanto o segundo toma um mito que circunda as pessoas escravizadas que fugiram da dominação. Por fim, o também brasileiro O túmulo da terra flerta com o expressionismo alemão ao apresentar uma jornada de autodescobrimento de um personagem.

Identidade e racialização

O Brasil divide com o restante da América Latina um complexo processo de racialização que envolve os povos originários, o invasor branco-europeu, as populações negras e os inúmeros fluxos migratórios em mutação contínua desde meados do século 19. Assim, um dos focos de interesse de América Negra é mergulhar nas formulações de identidade entre nós.

O primeiro programa de sábado, 5, reflete as diferentes formas de habitar a pele preta. O mexicano Negra se debruça na trajetória de cinco afro-mexicanas que experienciam um tortuoso processo de autoidentificação. Já Mutações do racismo: a experiência de um jovem universitário (Mutaciones del racismo: la experiencia de un joven universitario) narra em primeira pessoa a jornada de um afro-colombiano rumo a autoaceitação. Formando um contraste, Olhos de erê divide conosco a mirada de Luan, uma criança negra quilombola que tem no centro de sua existência referências afro-brasileiras.

Um segundo programa a relacionar-se com o mesmo eixo é a segunda sessão de domingo, 6. Iniciamos a conversa com Farías, uma história de amor afro-uruguaia (Farías, An Afro Uruguayan Love Story), documentário que revela um personagem negro com raízes que remontam à escravidão. Afro-argentinos (Afroargentinos) enegrece o país dos hermanos, demonstrando que a presença negra não é recente ou se resume a imigrações das últimas décadas. Tita, tecedora de raízes (Tita, tejedora de raices) representa outro aporte da nossa curadoria para pensarmos o México a partir do elemento negro. Por fim, Invazão Brazil implode noções como a de Estado brasileiro para afirmar uma centralidade indígena e racializada desta terra que é nossa.

América Negra se abre também para as conversas entre populações afro e povos originários. Assim, pedimos licença a este território para o qual fomos trazidos forçados e propomos pontes entre as nossas experiências com uma das sessões de sábado, 5. Amarração materializa, a partir do Brasil, o desejo de interlocução entre nossas posições racializadas. O boliviano/equatoriano Assim que é, e daí? (Ukamau y ké) recupera a vida e obra do importante rapper aimará que morreu em circunstâncias análogas ao nosso Sabotage. Já Herança de um povo (Herencia de un pueblo) tira da periferia o legado cultural negro no Peru por meio da dança.

Acervos e arquivos

A manutenção da memória da história negra latino-americana organiza os filmes da sessão do último sábado, 12. O equatoriano Suspeitos (Sospechosos) visita um infame episódio de racismo por parte da polícia de Quito, Equador, que manteve sob sua custódia 23 pessoas, todas negras, sem nenhuma acusação ou denúncia. O brasileiro Acervo ZUMVI presta homenagem ao fotógrafo baiano Lázaro Roberto, responsável também por preservar a memória de importantes capítulos pretos. E Urabá: dancehall à prova de balas (Urabá: Dancehall a prueba de balas) conecta o passado e o presente da vibrante cena musical da região banhada pelo mar caribenho na Colômbia.

Como falar de si?

A sessão de quinta, 10, apresenta ao público cinco filmes que, de maneira distinta, expressam lugares a partir dos quais se fala na condição de pessoas pretas. Numa abordagem documental mais tradicional, Gertrudis Blues revela uma personagem posicionada num enclave identitário que relaciona afro-mexicanos e afro-americanos. Flertando com a performance e com a linguagem direta, Clandestyna nos conta da arte e das reflexões de três travestis pretas e suburbanas do Rio de Janeiro. Candombe do Açude: o passado contado pelo canto. Ep. 1: Pandemia — Isolamento ou Respiro? narra desde dentro a celebração candombera no importante quilombo belo-horizontino. Nana Dijo: uma flutuante radiografia da consciência negra (Nana Dijo: Irresolute Radiography of Black Consciousness) propõe, a partir do México, uma conversa transversal sobre identidade negra na América Latina. Por fim, o etnodocumentário Nem livre, nem assalariado (Ni libre, ni assalariado) apresenta a vida dos trabalhadores pileros em Medellín, Colômbia.

Negra e mulher

Filmes com, sobre ou por mulheres negras estão espalhadas ao longo de toda programação. Ainda assim, na sessão de segunda, 7, reunimos filmes com personagens mulheres cujas identidades são marcadas pela diferença. O bairro das mães solo (El barrio de las mujeres solas) nos conta de um bairro em Quito, e da vida de cinco mulheres negras que têm em comum a experiência da maternidade solo. Luz para elas (Luz para ellas) leva o público até Cuba para conhecer duas artistas que têm na música seu meio de expressão. Já Érica nos transporta ao Morro do Chapéu, interior da Bahia, onde conhecemos um fragmento da vida de Érica Jesus Silva e seu companheiro, Hudson Oliveira Maia.

Ritos de passagem

No programa da quarta, 9, estão reunidos filmes que orbitam noções como transmutação e transfiguração. O colombiano/mexicano Chimbumbe mergulha em construções míticas palenqueras para contar uma bela história de amor. Este povo precisa de um morto (Este pueblo necesita un muerto) nos lembra de um outro momento das discussões de transidentidades por meio da vida de Stefany, travesti chocoana. Macumba de travesti, feitiço de bixa: malva é um gesto de autocuidado em forma de vídeo que se recusa a aceitar o aprisionamento pelo lugar de fala.

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América Negra é a primeira mostra realizada pelo Nicho 54 em que não assumo sozinho o processo curatorial. Ela é resultado direto das pesquisas, reflexões, olhares e provocações de Bruno Galindo (São Paulo), Gabriel Araújo (Belo Horizonte), Kariny Martins (Curitiba) e Mariana Souza (Recife). Com um prazo aquém do ideal, esses quatro jovens curadores negros levaram a mostra para territórios que só entenderemos na totalidade após o fim das exibições. Tenho muito orgulho do trabalho que fizemos.

Ainda na curadoria, um forte agradecimento aos pesquisadores que me ajudaram a navegar pelas complexidades da Venezuela – Juan Carlos Urbina – e da Colômbia – Inajara Diz, Stéphanie Moreira. Um outro conjunto de agradecimento vai para os professores do curso “Discursos acerca das negritudes latino-americanas”, que prontamente aceitaram dividir suas pesquisas com o nosso público, contribuindo para a compreensão de giros complexos: Bocafloja, Flavia Rios, Liliana Angulo Cortés, Miriam Gomes, Stéphanie Moreira.

Um último bloco de agradecimentos vai para a equipe que constrói o Nicho 54. Fernanda Lomba, cofundadora e diretora executiva: só nós dois vemos o trabalho diário que é seguir tocando o que criamos a três, em 2019, junto com Raul Perez. Karen Almeida, que delícia nossas interlocuções e as ligações de aprendizado. Mariana Santos, somos sortudos por ter seu olhar humano para demandas jurídicas. João Barbosa, você é a materialização do arguto. Fernando Michele, um prazer mirar sua atenção aos detalhes e busca por respostas. Cristiano Filiciano e Eduardo Ribas, com tão pouco tempo vocês vêm captando o que é o Nicho e traduzindo de forma exemplar na comunicação.

Ficha técnica

Concepção e direção curatorial: Heitor Augusto
Curadoria e programação: Bruno Galindo, Gabriel Araújo, Kariny Martins, Mariana Souza
Produção e coordenação: Karen Almeida
Professores do curso “Discursos acerca das negritudes latino-americanas”: Bocafloja, Flavia Rios, Liliana Angulo Cortés, Miriam Gomes, Stéphanie Moreira
Pesquisa – Território Venezuela: Juan Carlos Urbina
Pesquisa – Território Colômbia: Inajara Diz, Stéphanie Moreira
Concepção de arte e identidade visual: Lucas de Brito
Assessoria de imprensa: Cristiano Filiciano da Silva
Redes Sociais: Eduardo Ribas
Tradução simultânea (Curso “Discursos acerca das negritudes latino-americanas”): Gabriela Figueiredo, Henrique Cotrim, Julieta Boedo
Tradução e legendagem: Andrés Schaffer, Angélica Rosa, Gabriela Figueiredo, Gabriela Meneses, Pedro Ribeiro Nogueira, Shay Santana, Thiago Landi
Outreach: Taturana Mobilização Social
Desenvolvimento da plataforma Sala 54: Mandelbrot
Programação: Andrei Thomaz, Filipe Davi, Marcos Marcelo
Revisão: Maíra Corrêa Machado

Agradecimentos

A direção curatorial agradece a todos os diretores e diretoras, produtores e produtoras e também às distribuidoras que confiaram seus filmes aos nossos cuidados. Reforço também os agradecimentos a:

Anderson Feliciano, Christian Sida-Valenzuela / VLAFF, Carolina Freitas da Cunha / Mostra Ecofalante, Carolina De Robertis, Clarisa Duque, Cornelius Moore, Jannike Curuchet / IMCINE, Layla Braz / Semana de Cinema Negro de Belo Horizonte, Liliana Angulo Cortés, Márcia Vaz, Mariana D’aquino, Pamela Harris, Patricia Victoria Gomes.

Patrocínio

Open Society Foundations